TERESA DIAS COELHO
Retratos de Tempos Felizes
Anísio Franco
Teresa Dias Coelho apresenta-nos uma série pinturas que se identificam de imediato como fotogramas de retratos de antigamente. São todas a preto e branco, ou pelo menos assim querem parecer, na típica gradação de cinzentos das fotografias da primeira metade do século XX. Devemos, portanto, entender a escolha de imagens produzidas durante um tempo já pretérito para servirem de suporte à obra da artista.
São retratos frontais, de um tempo em que se escolhia a ocasião certa para a fotografia das pessoas amadas. São diferentes dos nossos, quando de hora a hora fotografamos quem nos rodeia e a nós próprios, numa contínua reportagem da vida e da captura do instante para divulgar nas redes socias. No tempo presente nos retratos de Teresa Dias Coelho guardavam-se as melhores ocasiões para usar as máquinas fotográficas e registar os momentos felizes. Entre cada um dessas circunstâncias decorria um longo lapso de tempo. Hoje, ao olhar essas imagens buscamos na memória a narrativa que mais nos convém para unir cada um dos seus marcos dispersos. Funcionam como autênticos nutrientes da imaginação. Cada uma das imagens serve de documento das memórias familiares, e quando desejamos reconstruir a história vamos buscar esses fragmentos de matéria. Mesmo que a história que desejamos construir não seja a nossa, eles estão gravados indelevelmente no nosso subconsciente e servem de matéria-prima para a construção das nossas narrativas. Tal como afirmou Luís Sepúlveda em entrevista que deu a Lúcia Crespo, “O passado vive sempre dentro de nós. (…) Eu tentei ir contando sempre, de forma gradual, as coisas que me pareciam mais significativas, colocando-as sempre ao serviço de uma história. Quando escrevo um romance, coloco sempre uma dose deste passado porque sinto que serve a narrativa e, interessa-me, sobretudo, que os meus livros sejam um grande exercício de memória, um registo de memória, porque esta é uma memória que não deve ser esquecida”.
Restam os momentos de que não temos memórias: esses tornam-se mais aliciantes, mais ricos em termos de criatividade. Quando encurtarmos os lapsos de vazios nas memórias estamos a perder terreno em termos imaginativos e transferimos para as máquinas a capacidade de armazenamento memorial. Ao enchermos as memórias-máquina com milhares de imagens, vamos perdendo gradualmente a capacidade crítica e seletiva, relegando as imagens do passado, por vezes nem muito distante, para o lugar do esquecimento provocado pela acumulação excessiva de memórias. São estas imagens que Teresa Dias Coelho insiste em resgatar e atribui-lhes o estatuto de obra de arte, para que definitivamente não sejam extintas. Há aqui a necessidade de criar raízes na árvore da existência. “O enraizamento talvez seja a necessidade mais importante e mais ignorada da alma humana. (…) Um ser humano cria raízes devido à sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que mantém vivos alguns tesouros do passado e alguns pressentimentos do futuro.”, diz Simone Weil.
Nas pinturas de Teresa Dias Coelho os contornos dos retratados não são definidos de forma a identificar alguém. São retratos de gente feliz num determinado momento das suas vidas. São perfis propositadamente difusos de personagens que poderiam ser da nossa família, para que cada um de nós neles reconheça parte do passado, para que possamos partilhar a vontade de afirmar a história como matéria fundamental da liberdade individual e não como uma soma de imagens que fazem parte da amálgama gritante de um mundo virtual.
Anísio Franco
2023
No Limiar da Pintura
António Guerreiro
Na antiga história do antagonismo entre a pintura e a fotografia, ressalta com grande lucidez a visão profética de Walter Benjamin de que “um dia, a pintura e a fotografia fundir-se-ão no lampejo de uma grande inspiração social”. Estes quadros de Teresa Dias Coelho são uma prova eloquente dessa fusão, na medida em que fazem da fotografia o medium da pintura. Não à maneira do Warhol, talvez mais em diálogo com as foto-pinturas de Gerhard Richter, mas seguindo um específico caminho, onde não cabe, por exemplo, o flou, o desfocado, característico de Richter. Este processo específico é o da pictórica mimesis, da representação que imita formalmente as fotografias amadoras de um álbum de família, com os seus códigos temáticos e narrativos que cumprem a função que se diz numa fórmula cristalizada e exaustivamente repetida: “Para mais tarde recordar”.
Aqui, a velha rivalidade entre pintura e fotografia dissipou-se completamente: estas pinturas são na verdade pseudo-fotografias em que o aspecto “pseudo” é ostensivamente sublinhado, suspendendo assim o “naturalismo” e convidando o espectador a lançar um olhar interrogativo, em dois sentidos: o que é que nestes quadros, muito especificamente, é um desafio à fotografia pela pintura e o inverso, isto é, um desafio à pintura pela fotografia.
O processo e o efeito da passagem de um medium a outro é o “enigma” que habita este quadros e lhes confere densidade. Em primeiro lugar, aquilo a que Barthes chamou o noema da fotografia, o “isto foi”, fica anulado. A pintura, ao contrário da fotografia, não é um espelho dotado de memória. E enquanto as fotografias que deram origem a esta mimesis pictórica povoavam o mundo familiar de fantasmas, de realidade fantasmática, os quadros, na sua dimensão narrativa, constroem ficções e operam uma passagem da funcionalidade social para o domínio estético. Devemos aliás notar que a dimensão naturalista se limita às representações das figuras humanas, já que a paisagem, o fundo onde elas se projectam, é pintura abstracta. Mais ainda que os índices temporais, os índices físicos e espaciais são anulados: a história daquelas figuras humanas deixa de ser importante e elas passam a ser de um tempo sem datas. E tendo transitado para segundo plano o seu valor referencial, também o seu valor cognitivo se desloca. Por exemplo, para a pose e os gestos daquelas figuras, onde reconhecemos os códigos das fotografias de um álbum de família, mas que os cristalizam e os tornam inquietantes. Tanto mais inquietantes quanto mais familiares. Estas pinturas-fotos (um “género” que não coincide com as foto-pinturas de Richter) ganham assim um significado alegórico. Vistas na perspectiva da alegoria, elas permitem que se veja o contrário da felicidade e alegria que estes rostos exibem, na sua significação primeira e mais evidente, e tornam-se máscaras de ruína, mortificadas e sem redenção, ao contrário das fotografias que estão na sua origem. Estas continuam para sempre a dar-lhes vida; mas trasladadas para a pintura, com o pincel e a tinta de Teresa Dias Coelho, elas permitem que se veja nelas um carácter lutuoso que contradiz a manifesta alegria. Para isso contribui uma densidade cinzenta em expansão que evita a emergência do contraste chiaroscuro, sem deixar de salientar a tensão entre os valores luminosos e a sombras. E esta oscilação abre um espectro alargado de representações. Olhados com atenção, estes quadros são muito mais abstractos do que parecem à primeira vista. Eles têm duas camadas de significação: a primeira é de tipo naturalista e narrativo; a segunda tende para a abstracção, para a mancha formada por declinações do cinzento que vão do quase branco ao quase preto.
Não podemos deixar de pensar na arte do retrato. Mas o género clássico do retrato tem uma intencionalidade caracteriológica que não existe nas figuras humanas representadas nestes quadros. Aqui, os rostos são pouco eloquentes, exibem pouco mais do que um olhar e um sorriso cristalizados como fórmulas. Não escondem nada porque também deixam ver muito pouco através deles. O “mistério” destas pinturas-fotos situa-se preferencialmente noutro lado: na pose e nos gestos expressivos, mas também em todo o trabalho formal onde a pintura se mostra na sua imanência. Como se consegue essa expressividade? Com os meios da pintura que no entanto muito devem à técnica e às faculdades do desenho. E, mais uma vez, estes quadros, apesar de nos remeterem com grande evidência para um campo mimético, revelam-se como uma elaboração dos limiares e manifestam uma tensão entre dois pólos: entre a pintura e a fotografia, entre a representação naturalista e a abstracção, entre a pintura e o desenho, entre a mancha e a definição dos contornos, entre a luz e a sombra, entre o claro e o escuro. E esta tensão acrescenta-lhes uma subtil densidade que solicita do espectador um olhar que não pode ser o olhar distraído que se satisfaz com o primeiro nível, referencial e narrativo.
António Guerreiro
2023
© 2023 Teresa Dias Coelho